Ajayu ou mais que a alma
Neste ensaio, exploro o conceito de ajayu, termo aimara e quíchua que vai além de "alma", envolvendo práticas culturais e relações ecológicas dos povos Andinos.
Este ensaio será dividido em duas partes: uma voltada à narração e outra à análise - embora, como é comum no ofício antropológico, essas dimensões se entrelacem. Narrar, neste contexto, nunca é apenas descrever, e analisar dificilmente pode ser dissociado da vivência ou do cenário cultural que lhe confere sentido. Assim como o antropólogo que observa e participa, minha escrita busca costurar e desfiar ao mesmo tempo, criando uma dialética entre descrição densa e interpretação crítica. Esse movimento, tão caro à tradição etnográfica, encontra inspiração nos grandes mestres como Franz Boas e Bronislaw Malinowski, cuja abordagem encarna o espírito da antropologia como ciência da experiência e do significado.
Neste ensaio, proponho discorrer de forma breve e livre sobre o conceito de ajayu, um termo originário das línguas aimara e quíchua que, longe de ser simplesmente traduzido como "alma", carrega camadas de significados que dialogam com práticas culturais e relações ecológicas profundas. Para iluminar esse conceito, colocarei ajayu em diálogo com autores que teorizaram sobre a alma, como Aristóteles, Avicena e Agostinho, e também, com outras cosmologias ameríndias que oferecem perspectivas ricas e sofisticadas sobre a existência e a conexão entre humanos, natureza e espiritualidade.
É impreciso dizer que o ajayu é a alma. Sua essência se assemelha mais com uma energia vital, uma força natural que garante vida; sua capacidade elástica nos convida a repensar nossas noções de "alma" como algo intrinsecamente humano e desvinculado do mundo ao nosso redor. Ao contrário, como buscarei demonstrar, esse conceito ameríndio está profundamente entrelaçado com a biodiversidade e com a dinâmica metaecológica das paisagens andinas. Ao explorar essas relações, evidencio como a visão de mundo indígena subverte ideias eurocêntricas, revelando uma ontologia relacional onde vida, corpo, cosmos e espírito se conectam de forma indissociável. Este será, portanto, um exercício de análise comparativa que navega por diferentes tradições filosóficas e cosmológicas, com o objetivo de destacar a sofisticação das concepções ameríndias e a maneira como elas desafiam e enriquecem nossa compreensão global da alma e do espírito.
Narrando e Analisando
Num frio rigoroso na 28ª feira do livro de La Paz, em 2024, na Bolívia, auxiliei a artista e amiga Ruth Albernaz como tradutor durante uma oficina sobre ilustração de livro infantil que ela ministrava. Um fato interessante desta comunicação é que só consigo falar espanhol quando estou na Bolívia. No Brasil eu não consigo acessar a “ginga” cultural necessária para falar do jeito que a língua saia de minha boca brasileira. Bom, em dado momento, na tentativa de traduzir uma expressão que Ruth havia dito, algo como “é preciso conhecer a alma da página”, precisei parar e pensar por alguns instantes. Alma não é um conceito tão familiar para nossos irmãos bolivianos, mesmo que a religião cristã seja muito forte. Ali, a maioria era do povo Aimara falantes tanto de espanhol, quanto das línguas Aimara e Quichua. Então, arrisquei a palavra “Animus”, algo que dá vida, movimento, mas a pouca idade dos presentes (adolescentes entre 15 e 19 anos) não os permitiu que este conceito tão velho fosse assimilado. Então, sr. Pedro, um pastor e também tradutor (eu auxiliava Ruth porque Sr. Pedro estava descansando) sugeriu a palavra ajayu. E naquele momento, todos os presentes riram. Dava para ver em sua expressão que haviam entendido tudo, em plenitude. Como sou um bom curioso (e por isso antropólogo), esperei até o intervalo para conversar com as garotas sobre o que era ajayu e para minha surpresa ganhei dessas irmãs e vizinhas de fronteira um conceito belíssimo para expandir as noções entre planos e dimensões de vida.
Para começar, ajayu não é uma tradução para alma no sentido ocidental-cristão do termo e nem em outros. Trata-se de uma energia cósmica essencial para a vida, um “elo” entre o corpo e a vitalidade que o anima, ou como gosto de definir uma força natural. No entanto, para alguém imerso em uma tradição linguística e cultural profundamente influenciada pelo cristianismo, pode ser difícil desassociar o conceito de ajayu da noção de alma ou espírito. Essa confusão tem raízes históricas e linguísticas que ajudam a compreender os desdobramentos culturais do termo. As duas línguas ameríndias com maior número de falantes — o Quíchua e o Aimara — oferecem um panorama revelador dessa questão. Ambas têm origens muito anteriores ao Império Inca, com uma diversidade de dialetos espalhados pelos Andes. Embora, por algum tempo, tenha sido defendida a ideia de que pertenciam a um mesmo tronco linguístico, essa hipótese foi descartada devido às diferenças estruturais significativas entre elas. O que se percebe, na verdade, é o resultado de séculos de intercâmbio cultural, com trocas amistosas de objetos, práticas e, claro, palavras. Durante o apogeu do Império Inca, o Quíchua foi adotado como idioma oficial. Essa escolha visava facilitar a administração imperial por meio de uma linguagem comum, criando uma espécie de “padrão clássico” que padronizava a comunicação e limitava a proliferação de dialetos regionais. Curiosamente, a variante selecionada era a falada no Sul, destacando como as escolhas linguísticas têm sempre implicações políticas. A rápida adoção do Quíchua como língua franca em regiões pré-colombianas, como o Peru, marcou as interações culturais daquele tempo. Contudo, é importante lembrar que, naquele período, a língua era estritamente oral. Registros escritos estavam limitados a números e eram feitos por meio de quipus — cordões de lã coloridos com nós que codificavam informações. Esse quadro mudou com a chegada dos espanhóis, em particular dos missionários jesuítas. Frei Domingo de Santo Tomás, um jesuíta que chegou ao Peru por volta de 1538, aprendeu o Quíchua e, em 1560, publicou a Grammatica a arte de la lengua general de los índios de los reynos del Perú. Esse feito representou o início de uma longa interferência colonial nos sistemas linguísticos andinos. A Igreja Católica, interessada em expandir sua influência, declarou o Quíchua como língua oficial para as pregações religiosas na região e foi nesse contexto que a palavra ajayu, presente tanto no Quíchua quanto no Aimara, foi traduzida como "espírito", e, em alguns casos, até como "Espírito Santo". Esse processo de tradução, permeado por interesses religiosos, desconfigurou o significado original do termo. Assim, o ajayu, uma força cósmica essencial à manutenção da vida e à conexão entre o indivíduo e o universo, foi reinterpretado e assimilado a categorias cristãs que não necessariamente captam sua complexidade original.
A etnografia, enquanto prática de descrição densa, é crucial aqui. Apenas um mergulho nos contextos específicos em que o ajayu é evocado pode revelar sua natureza relacional, que transcende as concepções cristãs de alma. O ajayu não é apenas uma energia individual; é uma força vital que conecta o ser humano ao mundo natural e ao cosmo, criando laços de reciprocidade entre os vivos, os ancestrais e a paisagem. Essa perspectiva, apagada pela tradução colonial, ressurge quando ouvimos atentamente as narrativas locais. Explicar o ajayu não é apenas descrevê-lo; é situá-lo em suas redes de significado, questionando os moldes epistemológicos que insistem em traduzir o que, muitas vezes, não cabe em palavras.

Deixando, por ora, esse olhar mais historicista, e reafirmando a crítica à colonização cultural e espiritual empreendida pela Igreja Católica nas Américas, retorno à memória de uma conversa que tive com minhas amigas bolivianas Marianela, Masita Maki e Jehnnyfer no intervalo da oficina em que eu estava como tradutor. Durante nosso papo, elas compartilharam suas próprias visões sobre o que é o ajayu. "É o que cola sua vida ao seu corpo", disseram. Nesse momento, uma torrente de imagens invadiu minha mente. A metáfora do ajayu como um "cola-vida" trouxe à tona associações de como essa descrição carrega uma força relacional intrínseca, sugerindo que o corpo e a vida não são unidades autônomas, mas conectadas por algo essencial, algo que pulsa no limiar entre o visível e o invisível. Matéria e antimatéria. Continuaram: quando uma criança pequena se assusta e grita ou chora, o ajayu dela sai do corpo. Porque até os oito anos o ajayu pode escapar. Se isso acontece, a criança fica muito doente e pode morrer. Não tem como viver sem ajayu. Então, a mãe pode levar numa curandeira para trazer o ajayo de volta. Me contava Masita Maki. Então, Jehnnyfer disse: você pode também pegar uma peça de roupa, como um casaquinho, e balançar para cima chamando o nome da criança ‘caio, caio” para que o ajayu volte. A voz dela soou muito gentil e eu entendi que era este o tom que se chama um ajayo de volta. Uma vez que precisa acalmar um cão assustado. Sr. Pedro ouviu a conversa e contribuiu: a mãe pode pegar um pouco de terra do chão e colocar embaixo da língua da criança para deixar o ajayu mais preso no corpo. Toda vez que adoecemos, é porque o ajayu saiu do nosso corpo. O medo, é a principal enfermidade do ajayu. Veja só que maneira sofisticada de se relacionar com as forças de vida que habitam o corpo. A terra, ou seja, a conexão primeira, a mãe Gaia, ao ser colocada abaixo da língua, nosso lugar de palavra, faz com que o ajayu fixe-se com mais força e resista aos sustos e choros com mais força. O medo como a principal enfermidade do ajayu pressupõe que as forças sentimentais podem operar em camadas mais profundas, e corrobora para a ideia de que o ajayu é uma força vital e natural do corpo. Se tomamos como príncipio que é comum dizer que “o medo paralisa”, temos a ideia de ânimus do corpo. Se tomamos como princípio a ideia de que viver com medo pode “baixar nossa imunidade”, temos aí o restante. Contudo, é verdade que há crenças espanholas sobre a alma sair do corpo por vários motivos, também. Um deles seria o espirro. Mas o ajayu não se trata de uma alma, como já foi dito, mas uma força natural que permite ao corpo receber energias que o vitalizam – uma vez que sem ajayu, a criança está suscetível a muitas doenças e a morte prematura.
Minhas amigas me narraram mais maravilhas sobre o ajayu. Entre risos e memórias compartilhadas, revelaram-me como esse conceito atravessa gerações, manifestando-se em práticas que mesclam um modo de viver que resiste ao tempo. Uma dessas práticas me tocou profundamente: a canção-oração que as crianças aimaras entoam para proteger-se dos perigos. Masita Maki, com sua voz doce e tímida, cantou para mim uma dessas preces. Era uma melodia simples, mas carregada de sentido, entrelaçando a devoção católica com as raízes espirituais aimaras.
Gloria a los angeles, a los angeles del cielo! Si alguien te pregunta quién es tu padre... Si alguien te pregunta quén es tu madre. El Santo Jose, vas responder. Virgen Maria, vas responder. De onde vienes? Le van preguntar. Del centro del mundo, vas responder. He passado por tres calvarios. Vas a decir, angelito. Del centro del mundo, sembrando gloria, barriendo gloria. Asi vas a responder, angelito. (MAKI, 2023, s.p)
A ideia de a canção-oração ser entoada por crianças a partir do medo de perder seu ajayu tem notas de um catequismo compulsório às crianças Aimara. Mas, nem mesmo a Santa Igreja foi capaz de substituir totalmente a crença original. Veja, o povo Aimara acredita que antes de haver vida, havia apenas trevas. Foi Pusica’ka quem criou a luz e junto com ela todas as outras coisas visíveis (pessoas, animais, terra, lua, sol). Contudo, uma virgem de nome Iqui pariu um filho de Pusica’ka sem relações sexuais. Este foi chamado de Tunupa. Quando adulto, Tunupa nivelou todas as montanhas e colinas, levantou as planícies e os vales e fez com que todos os animais e feres lhe servissem. Ele é o prodígio que transformou aquela região no centro do mundo – uma referência clara na canção-oração, em que os versos fazem uma espécie de retorno “De onde vem? Do centro do mundo, vai responder”.
Todo dia 02 de novembro, dia de finados, dia dos mortos, eles comemoram o dia do ajayu. Porque quando uma pessoa morre, o ajayu deixa o corpo e vai morar no alto das montanhas geladas. Por isso, se uma criança morre, o pai deve vestir-se de preto e levar pessoalmente o ajayu até certa altura das montanhas, pois ele ainda não saberá o caminho por ser ainda imaturo. A roupa preta serve para fazer sombra ao ajayu, que neste estado prematuro se desgasta muito com o sol. Além disso, as famílias relembram de seus falecidos parentes e fazem coletivamente pães em forma de escadinhas – que são benzidos em orações e levam o nome dos finados junto a alguns versinhos ou poemas. Cada família monta um altar com as escadas a fim de que os ajayus desçam das montanhas e venham visitar a família e comer o pão bento. Os aimara acreditam que os velhos ajayus precisam que seus familiares lhe alimentem com pão para que sua força continue protegendo as montanhas geladas. Um fato curioso é que os pães, ao fim do banquete dos ajayus, são trocados entre os vizinhos e amigos, em que um come e lê os versinhos do ajayu do outro – o que estimula por excelência o viver em comunidade. Esta prática eleva o pensamento de comunidade e aldeia a um patamar de manutenção da energia vital do ambiente, em que uma vez por ano as pessoas de juntam para cuidar dos ajayus que cuidam das montanhas, que guardam os ventos e o saber do povo. E o fato de trocarem os pães, cria uma ideia de que “o outro é preciso para que o ajayu da minha família se fortaleça”. É uma biointeração cosmogônica. A título de nota, Marianela me contou que quando uma pessoa morre, é preciso lavar toda a sua roupa para que o ajayu não fique preso nela e não consiga subir para as montanhas. Alguns optam por queimar a roupa, se a morte foi difícil. Caso isto não ocorra, o ajayu pode ficar perdido por entre os locais e pertences do morto e isso atrai medo para perto.
Analisando e narrando
Após descrever o sapo em seu habitat — o belo e úmido refúgio na lagoa, saciando-se com o frescor da água gelada —, chega o momento ingrato de dissecá-lo. Sei que o gesto pode parecer brutal, mas ele se faz necessário para iluminar as dinâmicas simbólicas envolvidas. Para essa tarefa, apoio-me na contribuição seminal de um certo antropólogo francês sobre as tipologias de representação da alma. Segundo Lévi-Strauss (1956-57), as cosmologias humanas tendem a organizar-se em torno de dois polos principais. O primeiro, de caráter “sociológico”, concebe as almas como entidades que replicam, no além, a organização social dos vivos. Nessa visão, as almas mantêm-se afastadas, sendo periodicamente convocadas a renovar seus laços com os vivos. O segundo polo, de caráter “naturalista”, considera a alma do ponto de vista individual. Nesse contexto, ela se decompõe em uma sociedade orgânica de almas funcionais, cada qual responsável por uma atividade vital específica. Em oposição simétrica ao polo anterior, o problema aqui se concentra em conter a tendência permanente dessas almas à dispersão
A proposta conceitual de Lévi-Strauss, ao organizar os grandes mitos, oferece ferramentas potentes para compreender as complexas teias de significados que constituem o ajayu, permitindo situá-lo no segundo polo naturalista. No entanto, com a devida reverência ao mestre Lévi-Strauss, é necessário inverter essa lógica para entender a peculiaridade do ajayu. Diferentemente do que se esperaria, o ajayu não segue linearmente o percurso delineado pelos polos. Ele é, de fato, uma entidade individual enquanto habita o corpo do indivíduo. Contudo, ao migrar para as montanhas geladas após a morte do corpo, assume uma dimensão coletiva, integrando-se a uma sociedade de outros ajayus, em que é elevado ao papel de guardião da energia vital da natureza. Nesse sistema relacional, os ajayus dependem do apoio ritual dos familiares vivos para sustentar sua força e continuar protegendo a vitalidade da natureza. É uma relação de troca entre estados, ainda que nos mesmos planos. Simultaneamente, as famílias vivas dependem do fluxo de energia vital garantido pelos ajayus ancestrais para assegurar sua própria existência. Essa interdependência ressignifica a dicotomia entre os polos sociológico e naturalista, propondo um terceiro polo híbrido — o que poderíamos chamar de sociológico-naturalista —, que não apenas complementa, mas também subverte a estrutura binária originalmente proposta por Lévi-Strauss. Deste modo, o ajayu se apresenta como o mito vivo. Que em sua própria cosmologia funde-se com o ser humano para conferir a seu corpo a força necessária para suportar a vida. E quando o corpo morre – é o ajayu que o determina? -, esta força soma-se ao todo nas montanhas geladas, que não são outra dimensão, mas podem ser acessadas livremente. Não se pode dizer “meu ajayu” como se diz “minha alma” pois o ajayu não guarda nenhuma assinatura genética ou metafísica com o ser que vive naquele corpo. Ajayu é uma energia vital manejada para dar a condição de movimento ao corpo, não uma parte integrante da estrutura corpo-mente-alma ou suas derivações, apesar de, também, cumprir este papel.
O escritor e diretor teatral boliviano Ivan Nogales (2018) tem dedica sua vida a um projeto de perspectiva decolonial que se reapropria do ajayu como dispositivo de luta, em que aborda a partir de pesquisa acadêmica e produção artística a dicotomia entre medo-colonização e ajayu-decolonização, tendo conceituações a respeito desta força vital
[...] que não é só massa biológica. Já nossos ancestrais sabiam que o ajayu tem peso. Os sonhos, nossos desejos não são só emanações que se evaporam, são as viagens de nossos corpos por outras dimensões. Somos mais que só anatomia, somos mais que pura realidade. O corpo é também sonho. Somos o que sonhamos. (Nogales, 2013, p. 81)
Entretanto, se nos deslocarmos as primeiras concepções filosóficas acerca das almas a fim de evidenciar como são concebidos e materializados estes conceitos, chegaremos em Platão e Aristótoles. Afinal, é sabido que os ritos fúnebres da cosmologia Grega pedem que as almas sejam encaminhadas para o Hades com um ritual digno, colocando moedas nos olhos de soldados mortos para que possam pagar o barqueiro Caronte pela travessia pelos rios do submundo.
(...)quando não recebem a atenção de seus familiares diretos, através dos ritos fúnebres e sacrifícios, curtem a infelicidade vinda da privação de gêneros e honra, caindo, assim, no esquecimento, e por conseguinte, sendo “engolidos” por lethe, condenados a penar as amarguras desse abandono (PROVETTI, 2000. p. 13)
Platão em um dos diálogos, atribui a Sócrates uma afirmação que fundamenta a escolha de utilizar o termo "alma" (psukhé): "o ser humano é a sua alma" (Alcebíades Primeiro, 130c). Essa definição, aparentemente simples, revela a gênese de uma concepção que permanece central no pensamento ocidental: a alma como o núcleo da interioridade humana. A partir de Sócrates, a psukhé é compreendida como aquela dimensão do ser que transcende a destruição física, como a essência indestrutível e singular que identifica cada indivíduo. É, portanto, no âmbito dessa interioridade que se configura a capacidade de o ser humano afirmar: "Eu sou". No entanto, é interessante notar que esta noção, tão enraizada na filosofia clássica, tem influenciado profundamente nossas interpretações sobre o que significa ser humano, levando a uma valorização do "interior" como sede da identidade. A alma, neste sentido, assume uma posição central como princípio imortal e como a base a partir da qual o indivíduo se relaciona consigo mesmo, com os outros e com o cosmos (CARDOSO, 2006, p. 25). Se fôssemos buscar no ânimus de Aristóteles a resposta, minha primeira tentativa seria a de tirar a religião da alma e obter somente a ideia de movimento, para que seja possível dimensionar a importância que a investigação deste conceito tem:
Ao considerar o conhecimento como se encontrando entre as coisas mais belas e dignas do maior valor, sendo umas mais penosas do que outras, quer em virtude do seu maior rigor quer em virtude de dizer respeito a coisas mais belas e elevadas, decidimos, devido a essas duas mesmas causas, considerar toda a investigação respeitante à alma como sendo de importância fundamental" (ARISTÓTELES, 402)
Neste sentido, o filósofo propôs uma maneira de estruturar este conceito de modo que entidades são de maneira primordial os corpos e, entre eles, os corpos naturais: estes são os principais entre todos os demais. Entre os corpos naturais, há os que têm vida e os que não a têm; e costumamos chamar vida à autoalimentação, ao crescimento e ao envelhecimento, donde resulta que todo corpo natural que participar da vida é entidade, porém, entidade no sentido de entidade composta. E, posto que se trate de um corpo de tal tipo - a saber, que tem vida - não é possível que o corpo seja alma: e é que o corpo não é das coisas que se dizem de um sujeito; antes, ao contrário, realiza a função de sujeito e matéria - logo, a alma é necessariamente entidade, enquanto forma específica de um corpo natural que em potência tem vida. Portanto, a entidade é entelequia, logo a alma é entelequia de tal corpo. Portanto, se cabe enunciar algo em geral a respeito de toda classe de alma, haveria que dizer que é entelequia primeira de um corpo natural organizado (ARISTÓTELES, 412). E a partir disto, o filósofo grego vai estruturar a alma em dimensões organizadas:
[...] chamávamos potências às faculdades nutritiva, sensitiva, desiderativa, motora e discursiva. Nas plantas se dá somente a faculdade nutritiva, enquanto que nos outros viventes se dá não apenas esta, mas também a sensitiva. Por outra parte, ao dar-se a sensitiva se dá também (neles), a desiderativa. O apetite, os impulsos e a vontade são três classes de desejos. Entretanto, todos os animais possuem ao menos uma das sensações; o tato. [...] há animais que além destas faculdades lhes corresponde também a do movimento local; a outros, lhes corresponde, ademais, a faculdade discursiva e o intelecto: este é o caso dos homens e de qualquer outro ser semelhante ou mais excelso, supondo que o haja (De anima, 414a, 30; 414b)
Se voltarmos nosso olhar para o oriente, mais precisamente ao polímata persa Abu Ali Huceine ibne Abedalá ibne Sina, mais conhecido como Avicena - ou Ibn Sīnā, na tradição islâmica, e Avicenna, no Ocidente -, encontramos uma formulação sobre a alma que dialoga profundamente com a concepção grega. Para Avicena, a alma é o princípio imaterial que confere vida e racionalidade ao ser humano, distinguindo-o dos outros seres vivos. Em sua obra "O Livro da Cura" (Kitab al-Shifa), ele descreve a alma como uma substância incorpórea que transcende o corpo, mas que também exerce uma conexão ativa com ele, sendo responsável pela inteligência e pelas capacidades sensíveis e motoras. A alma, na visão de Avicena, não apenas sobrevive à destruição física, mas é a essência do ser humano, o que torna possível a autoconsciência e a afirmação do "eu". Essa definição ecoa a tradição socrática-platônica, mas é enriquecida pelo contexto filosófico e espiritual do Islã, em que a alma é vista como portadora de uma responsabilidade moral diante do divino:
[...] dizemos agora que a primeira das divisões das ações da alma são três: aquelas nas quais se incluem, se associam, o animal e o vegetal, tais como a nutrição, o crescimento e a geração; são ações nas quais estão incluídos os animais ou a maior parte deles - nas quais não há participação dos vegetais, tais como a sensação, a imaginação e o movimento voluntário; e as ações próprias dos seres humanos, como, por exemplo, a concepção dos inteligíveis, a invenção das artes, o discernimento dos seres engendrados e a distinção entre o belo e o feio. (Kitáb al-Nafs- P.40. linhas 1-10)
Ainda no enclaustro das almas, mas agora na Ásia, para as filosofias chinesas a concepção de alma é profundamente integrada ao conceito de qi (ou chi), a força vital que permeia todos os aspectos do universo. De acordo com o filósofo chinês Zhuangzi, "Procuro agir de acordo com o tao, a ordem natural das coisas. É algo que está para além da mera técnica. Quando comecei a talhar, via, à minha frente, o boi todo. Mas, depois de 3 anos de prática, já não os via como um todo. Via as distinções. E, agora, os meus sentidos param de funcionar e é o espírito que me guia livremente. Sem um plano, seguindo o instinto, sigo as fibras naturais, deixando a faca encontrar o seu caminho entre as muitas aberturas escondidas, tirando proveito do que lá está, sem tocar nunca num ligamento ou tendão e muito menos numa articulação importante”. (ZHUANGZI, 2022, p. 397). Para os chineses, a alma não é uma entidade independente ou transcendental, como no ocidente, mas uma expressão da interconexão entre o humano e o cosmos. A noção de shen (espírito) e hun (alma etérea) no taoísmo e no confucionismo reflete essa visão, onde o espírito humano está em constante interação com os elementos naturais e cósmicos, refletindo a fluidez e a continuidade da vida no universo. Assim, a alma chinesa é vista como um componente integrado e fluido, que não se separa da totalidade do ser e do mundo.
É possível observar que as noções de alma ou ânimus como uma estrutura motriz - uma essência que dá movimento ao ser - encontram paralelos notáveis em tradições filosóficas tanto no Ocidente quanto no Oriente vistas em Aristóteles, Avicenas e Zhuangzi. Entretanto, a questão que se apresenta, quase de modo inevitável, é: por que a ideia de espírito, alma ou ajayu nas Américas segue caminhos tão distintos? Por que as visões elaboradas pelos povos indígenas sul-americanos e norte-americanos se distanciam significativamente das concepções clássicas do Ocidente e do Oriente, ao mesmo tempo em que apresentam notável convergência entre si? E por que o ajayu parece se distinguir tanto das demais?
A partir deste percurso entre a filosofia da alma, digamos assim, encontramos semelhanças entre o ocidente e o oriente. Resta-nos agora, por óbvio, analisar o postulado feito por Agostinho de Hipona, o responsável por teorizar e investigar a alma sob os pretextos da filosofia católica e garantir que ela ganhe um status diferente das concepções anteriores. Em seu texto, é possível observar um pouco de sua jornada retórica a respeito da composição da alma.
Perguntei-o a Terra e disse-me: “Eu não sou”. E tudo o que nela existe respondeu-me o mesmo. Interroguei o mar, os abismos, e os répteis animados e vivos e responderam-me: “Não somos o teu Deus; busca-o acima de nós”. Perguntei aos Ventos que sopram; e o ar, com os seus habitantes, respondeu-me: “Anaxímenes está enganado; eu não sou o teu Deus”. Interroguei o céu, o sol, a lua, as estrelas e. disseram-me: “Nós também não somos o Deus que procuras”. Disse a todos os Seres que me rodeiam as portas da came: “Já que não sois meu Deus, falai-me de meu Deus, dizei-me ao menos alguma coisa dele”. E exclamaram com alarido: “Foi Ele quem nos criou” (AGOSTINHO, 201, p. 220).
Dirigi-me, então, a mim mesmo e perguntei-me: “E tu, quem és”? “Um homem”, respondi. Servem-me um corpo e uma alma; o primeiro é exterior, a outra interior. Destas duas substâncias, a qual deveria eu perguntar quem é o meu Deus, que já tinha procurado com o corpo, desde a terra ao céu, até onde pude enviar, como mensageiros, os raios dos meus olhos? À parte interior, que é a melhor. Na verdade, a ela é que os mensageiros do corpo remetiam como a um presidente ou juiz as respostas do céu, da terra e de todas as coisas que neles existem, que diziam: “Não somos Deus; mas foi Ele quem nos criou” (AGOSTINHO, 2011, p. 220).
É preciso ressaltar que uma das principais influências de Agostinho em se tratar de sua investigação acerca da composição da alma são os estudos de Platão. E, embora haja afinidades, como a centralidade da alma na definição do ser humano, também se encontram diferenças marcantes, sobretudo no que concerne à relação entre alma e corpo. Enquanto o platonismo e o neoplatonismo tendem a desvalorizar o corpo, enxergando-o como uma prisão ou túmulo da alma, Agostinho supera essa visão dualista e negativa, reinterpretando o papel do corpo à luz de sua teologia cristã. Para ele, o corpo é parte da criação divina e, portanto, intrinsecamente bom. Agostinho mantém a ideia platônica de que o ser humano é essencialmente uma alma que utiliza o corpo como instrumento. No entanto, rejeita enfaticamente a noção de que o corpo seja uma espécie de cárcere para a alma. Para ele, essa visão não apenas é incorreta, mas herética. Em suas palavras: "Não é o corpo o teu cárcere, mas a corrupção do teu corpo. O teu corpo, Deus o fez bom, porque Ele é bom." Além disso, afirmar categoricamente: "Todo aquele que quer eliminar o corpo da natureza humana desvaira." (AGOSTINHO, 2006-2007, p. 23). Em síntese:
Porque o homem não é só corpo ou apenas alma, mas o que é constituído de alma e de corpo. Esta é a verdade: a alma não é todo o homem, mas é a melhor parte do homem; nem todo o homem é o corpo, mas a porção inferior do homem; quando as duas estão juntas, temos o homem (AGOSTINHO, 2006-2007, p. 45).
Para analisar essa questão, é imprescindível firmar as bases ocidentais e orientais, mas, também, situar as cosmologias ameríndias em seus contextos culturais e etnológicos específicos, considerando tanto as interações locais com o ambiente quanto as dinâmicas sociometafísicas que as estruturam (GEERTZ, 1973). Os povos indígenas das Américas desenvolveram sistemas de pensamento que articulam profundamente suas relações com a biodiversidade circundante, os ciclos de vida e morte, e as forças invisíveis que, para o olhar ocidental, são interpretadas sob categorias como química e física, mas que, para esses povos, assumem contornos metafísicos distintos. Nessas cosmologias, o espírito não é apenas um princípio vital intrínseco ao indivíduo como a lógica Cristã o afirma, nem somente o animus grego ou persa, mas uma entidade relacional que opera de forma dinâmica entre o cosmos, as paisagens e as coletividades humanas e não humanas.
Entre os Balatiponé, de Mato Grosso, por exemplo, o espírito transcende a morte física, encarnando em pássaros que permanecem próximos à aldeia, participando da vida comunitária sob uma nova forma animal. Essa prática reflete uma concepção de trânsito espiritual, na qual o corpo é apenas uma manifestação temporária do espírito, enquanto este último mantém um caráter contínuo e expansivo, ainda que inserido em uma lógica de encarnação cíclica. O povo Boe, também de Mato Grosso, nos mostra um ritual em que o povo vivo da aldeia precisa submeter as almas dos mortos a um ritual para que subam coletivamente para o céu. É digno de nota que neste rito, membros específicos do corpo ritualístico, representam as almas utilizando vestimentas cerimoniais e realizando danças. No excelente livro “Refeição das Almas” de Renate Brigitte Viertler (1991), podemos partir da hipótese que, assim como ocorre entre os Guarani, os Bororo estruturam sua visão do ser humano a partir de dois princípios ativos ou "almas", que coexistem dentro e fora do corpo. O primeiro, denominado Aroe, está associado às capacidades cognitivas e sociais mais elevadas. Ele abrange faculdades conscientes como a linguagem articulada, a memória, o controle emocional, e a aptidão para as interações sociais. O Aroe manifesta-se especialmente nas práticas que exigem coordenação e criatividade, como a confecção de adornos elaborados, a organização de grandes expedições de caça e a realização de complexas cerimônias que honram os ancestrais e reforçam a coesão clânica. O segundo princípio, chamado Bope, vincula-se a esferas psíquicas subconscientes e inconscientes. Ele é relacionado a sonhos, pressentimentos, e impulsos primordiais que emergem do corpo, como o desejo sexual, a fome, e as emoções descontroladas. Esse princípio é percebido como uma força disruptiva, frequentemente dramatizada nas explosões de comportamentos impulsivos e gritos conhecidos como Bari. Tais manifestações estão conectadas ao consumo de alimentos, que, entre os Bororo, passa por um elaborado processo de produção e regulação comunitária, regido por rígidas prescrições culturais e cerimoniais. As práticas associadas ao Bope incluem os rituais de exorcismo, realizados em nome dos "senhores" dos animais, entidades espirituais que mediam a relação entre os humanos e o mundo natural. Nesse contexto, o Bope não é visto apenas como uma fonte de impulsos desestabilizadores, mas também como um componente indispensável da dinâmica social e cosmológica, integrando o humano ao ciclo vital mais amplo. Assim, esses dois princípios - o Aroe, que organiza e sublima a vida coletiva, e o Bope, que a conecta às forças primordiais e ao inconsciente - compõem uma dualidade complementar que molda a visão bororo de pessoa e sociedade. Trata-se de uma ontologia relacional que não apenas articula o humano com o cosmos, mas também organiza os modos pelos quais corpo, mente e espírito interagem com os outros e com o ambiente ao redor, sendo ainda possível observar algumas noções estruturantes das categorias de alma e sua divisão em campos de atuação, o que, em partes, pode se assemelhar de forma bastante pequena com o ajayu.
Já os Cherokee, da América do Norte, sustentam uma cosmologia centrada no Grande Espírito, uma entidade metafísica vinculada ao Grande Mistério. Segundo sua visão, esse Espírito primordial presenteou o povo com as terras onde viviam antes da chegada dos colonizadores, marcando uma relação de reciprocidade sagrada entre humanos e território. Aqui, a relação com o espiritual se configura como uma negociação entre as “duas pernas” - como se autodenominam - e uma força transcendente que detém autoridade e poder. O Grande Espírito, nesse caso, não é concebido como uma essência fragmentada ou individualizada, mas como uma totalidade externa que governa os fluxos territoriais e a existência coletiva. Essa relação humano-espírito, onde o espiritual assume um status superior - simbolizado pelo "E" maiúsculo -, posiciona as entidades metafísicas como mediadoras de poder e organização social. O Grande Espírito é, assim, visto como uma alma coletiva e abrangente, que transcende as individualidades e governa os povos sob um prisma relacional e territorial. Tal concepção contrasta marcadamente com a visão ocidental de espírito como algo singular e inerente ao indivíduo, oferecendo uma perspectiva que enfatiza a interdependência cósmica e a autoridade espiritual como elementos fundantes da vida social e ecológica desses povos.
A diferença – e por que não a semelhança? - fundamental parece residir na interconexão que essas culturas atribuem entre o espírito e o mundo exterior. Enquanto tradições ocidentais e orientais frequentemente se concentram na alma como algo intrínseco ao indivíduo - seja em termos de autoconhecimento (como no Ocidente) ou de harmonia espiritual (como no Oriente) -, ou na Alma Cristã, os povos indígenas americanos descrevem o espírito como algo que transborda os limites do corpo. Fugindo da concepção de alma. O ajayu, por exemplo, não apenas reside no indivíduo; ele se move, pode ser perdido, recuperado ou mesmo compartilhado. Ele não pertence exclusivamente à esfera pessoal, mas está em constante troca com os elementos que sustentam a vida: as montanhas, os rios, os ancestrais, os animais. Essas visões convergem entre os povos das Américas justamente porque compartilham uma cosmovisão relacional, que dissolve as barreiras entre o humano e o não humano. Nesse contexto, o espírito não é apenas um elo com a transcendência, mas também uma força operante no aqui e agora, moldando tanto o destino do indivíduo quanto o equilíbrio das comunidades e da natureza.
Uma tentativa de síntese
Em uma análise comparativa das concepções de alma nas tradições filosóficas ocidentais, orientais e nas cosmologias ameríndias, é possível observar como a ideia de ajayu – esta força natural e vital – se distingue não apenas das noções clássicas de alma, mas também como ela reflete a particularidade das relações sociais e cósmicas dessas culturas. A tradição ocidental, com sua raiz platônica e aristotélica, construiu a alma como algo essencialmente interior e imortal, uma substância que ressurge com o mesmo caráter autônomo, independente do corpo. Para Platão, a alma é o princípio da individualidade, do ser, capaz de transcender a morte física. Aristóteles, com sua noção de entelequia, situou a alma como forma do corpo, essencial para sua organização e função vital, mas ainda assim, imersa numa lógica que sublinha a distinção entre o corpo e a alma, como se fossem dois domínios separados. Nesse contexto, a alma se torna um conceito profundamente introspectivo, um reflexo da hierarquia entre o corpo e o espírito, com a crença de que a alma é o núcleo da identidade humana. A alma, aqui, se torna a fonte do "eu", o princípio que afirma e sustenta o sujeito em sua autonomia e individualidade. Esta construção, embora variada de Platão a Agostinho, mantém uma concepção que privilegia a alma como uma essência que transcende a matéria.
Por outro lado, as cosmologias orientais, como a de Avicena, propõem uma alma que também transcende o corpo, mas com uma relação mais integrada e fluida. Para o filósofo islâmico, a alma é imaterial e racional, mas não está isolada em uma experiência subjetiva; ela é entendida como uma força que dá forma ao corpo e interage com ele, mediando as relações entre o humano e o divino. Contudo, ainda se mantém em grande parte uma separação entre corpo e alma, embora se perceba uma interação mais complexa e dinâmica do que nas cosmovisões ocidentais. E, ainda, Zhuangzi apresenta uma visão da alma que se distorce da ideia ocidental de um princípio individual e imortal. Para o filósofo chinês, a alma humana está em constante transformação e adaptação, como um reflexo da harmonia entre o ser humano e o cosmos. Esta concepção de alma enfatiza a fluidez, a transitoriedade e a ausência de separação entre o ser humano e a natureza. Em vez de buscar uma identidade fixa, a alma, para ele, é um processo contínuo de mudança e integração com o Tao, o que reflete uma busca por liberdade e transcendência através da aceitação do fluxo natural da vida.
No entanto, é nas tradições dos povos indígenas das Américas que encontramos uma virada paradigmática na concepção de ajayu. O conceito de alma, ou espírito, nestas culturas não se restringe à interioridade do indivíduo nem à noção de imortalidade ou transcendência do corpo. O ajayu não reside fixamente dentro de um corpo (pode escapar até os 8 anos de idade e vai embora após a morte). Pelo contrário, ele está sempre em movimento, é fluido, e sua relação com o mundo exterior - a natureza, os outros seres humanos e os elementos espirituais - define a sua essência. O ajayu pode ser ou até mesmo perdido, e seu destino está indissociavelmente ligado ao ambiente natural e social em que o indivíduo está inserido. Neste sentido, esta força que possui momentos fixos e momentos de movimentos, sem necessariamente uma ordem estabelecida, seguem transitando o mesmo plano. Uma vez que, seu local de reunião não é o Hades, o Céu ou o Inferno, mas as montanhas geladas e pode ser acessado livremente a pé por quem quer que seja. Neste sentido, podemos pensar o ajayu como uma força natural, já que não é visto como uma essência superior e habita o mesmo plano natural. Contudo, uma força ainda não descoberta, mas já levantada por filósofos, físicos e biólogos como uma possível “força vital reimaginada”.
Essa noção de ajayu rompe com a visão ocidental de alma como um princípio independente e transcendental, e propõe, ao invés disso, uma concepção de força como algo que transita, que circula e que se entrelaça com o cosmos e as relações sociais. O espírito, comparando com as práticas dos Bororo, pode ser dividido em princípios complementares - o Aroe e o Bope - que moldam tanto a psique individual quanto as práticas coletivas. O Aroe, ligado à cognição e ao social, e o Bope, associado aos impulsos primordiais e ao inconsciente, demonstram que o espírito indígena não se encerra em uma única essência, mas é uma rede de forças em constante troca e transformação. Já o ajayu não tem estrutura ou definição, sendo somente uma força que possui rituais de manutenção, mas pouca literatura de origem.
Portanto, para sintetizar, se considerarmos a ideia de ajayu à luz da análise estruturalista, podemos perceber que ele reflete uma cosmologia em que a alma não é vista como um princípio fixo e isolado, mas como uma entidade relacional e processual, imersa nas dinâmicas do mundo e nas interações sociais. Ao contrário das concepções ocidentais que tendem a isolar a alma em um espaço interior e essencialista, a noção de ajayu nos convida a entender esta força natural como algo que se relaciona com o exterior, algo que é moldado e transformado pelas forças naturais, sociais e espirituais. Nesse sentido, o ajayu poderia ser chamado de alma dinâmica, mas ainda assim a definição de alma ainda é insuficiente para seu significado, uma vez que esta força habita o indivíduo, mas também o conecta com as forças que estruturam sua comunidade e o cosmos e necessita e possui uma relação de dependência com os vivos, gerando uma relação que nos faz crer que o ajayu está muito mais próximo de uma concepção de força do que de transcendência. Assim, a sofisticação do conceito de ajayu reside exatamente em sua fluidez e interconexão, que desafiam as abordagens dualistas e essencialistas da alma encontradas tanto no Ocidente quanto no Oriente, e até mesmo das outras cosmogonias ameríndias.
A título de paixão
Fica evidente aqui meu interesse pela sabedoria do povo aimará, que nos oferece uma perspectiva profundamente distinta sobre o mundo e o ser humano. O conceito de ajayu é apenas uma das muitas manifestações dessa visão. Outro exemplo fascinante é a maneira como simbolizam o tempo, que, na língua aimará, se articula de forma reversa em relação às concepções ocidentais. Para os aimarás, o futuro é representado atrás, como algo que não podemos ver, enquanto o passado se projeta à frente, como aquilo que podemos conhecer e perceber. Essa inversão simbólica parece estar enraizada em uma percepção mais relacional do tempo, onde a realidade se configura em torno do ego não como um ponto fixo, mas como um ponto de transição e conexão com o cosmos. O uso de gestos e palavras para se referir ao tempo evidencia a íntima relação entre o indivíduo e o universo, onde o passado, visto e conhecido, ocupa um lugar privilegiado à frente, e o futuro, desconhecido e imprevisível, permanece atrás, à espera de se revelar. Esse modo de pensar sugere uma compreensão do tempo não como uma linha reta e contínua, mas como algo cíclico, dinâmico e profundamente interconectado com a experiência individual e coletiva. O simbolismo aimara, assim, revela uma cosmologia em que o ser humano se posiciona não como um sujeito isolado, mas como parte de uma rede de interações cósmicas, onde o tempo e o espaço são sentidos de maneira fluida, movendo-se ao redor do ego, e não apenas para além dele.
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