Contracolonialidade: A Insurgência Necessária de Nego Bispo
Falar de contracolonialidade é falar de um enfrentamento direto à própria lógica colonial que ainda estrutura o mundo. E diferente do pensamento pós-colonial, que busca interpretar os impactos da colonização e suas ressonâncias contemporâneas, o contracolonial não se limita à análise: ele propõe uma subversão radical da matriz colonial. Nego Bispo*, intelectual quilombola, foi um dos principais expoentes dessa vertente, que não pede permissão para existir dentro dos cânones acadêmicos, mas impõe sua própria lógica de pensamento, alicerçada na oralidade, na ancestralidade e na auto-organização comunitária.
Para entender a potência desse pensamento, é preciso antes revisitar o que se convencionou chamar de colonial e pós-colonial. O colonial, na sua essência, é um sistema de dominação e poder que não se restringe ao passado das grandes navegações, mas que permanece vivo nas estruturas políticas, econômicas e epistemológicas que regem o mundo. O pós-colonial, por sua vez, se tornou uma escola de pensamento que busca desvelar as marcas desse passado no presente, mas que, muitas vezes, ainda opera dentro dos mesmos quadros conceituais que o colonialismo produziu.
É aqui que entra a força da contracolonialidade: não se trata apenas de criticar o colonialismo, mas de oferecer outras formas de existir que nunca se submeteram totalmente às suas regras. Um dos conceitos fundamentais de Nego Bispo é o de biointeração, que se opõe à ideia colonial de produção. Para o pensamento moderno ocidental, produzir é explorar, extrair, acumular. Já na perspectiva quilombola, segundo Bispo, não se produz, mas se interage com o meio, garantindo reciprocidade e continuidade da vida. Esse conceito desestabiliza a noção de progresso tal como herdamos da Europa e nos obriga a repensar as bases da organização social, econômica e ambiental. Neste sentido, pensar a contracolonialidade na América Latina é fundamental porque nosso continente continua sendo um espaço de experimentação para projetos extrativistas, desenvolvimentistas e neoliberais que perpetuam a lógica colonial. A resistência dos povos quilombolas, indígenas e camponeses às tentativas incessantes de expropriação vai além de uma luta por território: é uma batalha por formas de existir que recusam a lógica da acumulação infinita e do individualismo exacerbado.
Extraímos os frutos das árvores
Expropriam as árvores dos frutos
Extraímos os animais da mata
Expropriam a mata dos animais
Extraímos os peixes dos rios
Expropriam os rios dos peixes
Extraímos a brisa do vento
Expropriam o vento da brisa
Extraímos o fogo do calor
Expropriam o calor do fogo
Extraímos a vida da terra
Expropriam a terra da vida
Politeístas!
Pluristas!
Circulares!
Monoteístas!
Monistas!
Lineares!
(Poema de Nego Bispo)
Nego Bispo não pede para ser incluído no debate acadêmico; ele cria o próprio espaço, deslocando a centralidade da epistemologia europeia e afirmando que a "escrita" não é o único meio válido de produção do conhecimento. Em Biointeração, capítulo do livro “Colonização: Quilombos” ele nos diz assim sobre a produção nos engenhos de mandioca.
Os dias começam geralmente nas madrugadas com os engenhos tocando e as pessoas que operam o engenho, a fornalha e demais implementos, compondo e cantando suas lidas e vidas, juntos formando uma grande orquestra que anima a todas e a todos com a música da vida e o movimento desenvolvido pelos que fazem parte desta orquestra formando uma das mais belas coreografias que já pudemos vivenciar.
Daí em adiante tudo é orquestrado como as demais expressões, inclusive a forma de realização das tarefas e de distribuição dos seus resultados. Assim como na casa de farinha, os serviços são compensados com a rapadura, o mel, a garapa, etc., e/ou através da prestação de outros serviços. Os que não estão moendo naquele período, podem pegar parte dessa produção e compensarem o trabalho da forma com que os donos dessa produção acharem, por bem, necessário.
Assim, como dissemos, a melhor maneira de guardar o peixe é nas águas. E a melhor maneira de guardar os produtos de todas as nossas expressões produtivas é distribuindo entre a vizinhança, ou seja, como tudo que fazemos é produto da energia orgânica esse produto deve ser reintegrado a essa mesma energia.
“ a melhor maneira de guardar o peixe é nas águas” Esta é a convocatória para abandonarmos a nostalgia pelo velho mundo e a reconhecermos que outras formas de existir nunca deixaram de pulsar. Mais do que isso, a perspectiva contracolonial nos desafia a reinventar as estruturas de poder, substituindo hierarquias verticais por relações de cooperação e reciprocidade. O Estado, a economia e a própria ideia de cidadania podem ser repensados a partir de lógicas ancestrais que sempre resistiram à colonialidade. Trata-se de instaurar outras práticas de mundo, em que o poder seja redistribuído e a existência coletiva seja o próprio fundamento da política. E isso, por si só, é profundamente revolucionário.
*Nego Bispo nasceu em 12 de dezembro de 1959, no vale Rio Berlengas, próximo à cidade de Francinópolis, no estado do Piauí, viveu boa parte de sua vida no Quilombo Saco-Curtume, em São João do Piauí, onde morreu, vítima de uma parada respiratória provavelmente agradava pelo quadro de diabetes.
Muito bom, Lugares Selvagens!!!! É o segundo texto teu que leio hoje. Aprendi mais uma vez. Ajeita na última linha o "agradava" para "agravada". Só isso. O restante tá perfeito! Não sabia dessa abordagem do "Contracolonialismo". Obrigada! Quero saber o teu nome e de onde és! 🎈🌀💕✊ Rô, de Porto Alegre.
Uau! Cuiabá? Que massa! Dá uma olhada nas minhas newsllt mais antigas. Tem muita coisa boa lá, com outros enfoques. Fui atrás da abordagem contracolonialista ontem. O melhor de se ler aqui é aprender, internalizar e expandir os conhecimentos próprios. Estou sempre abrindo o dicionário, checando o Translate e digitando no Search. Aprender dá um gosto enorme. Fui docente de Filosofia em uma universidade gaúcha por 25 anos. Ensinar e aprender são faces de uma mesma engrenagem. Vou dar um curso de Filosofia Marxista a partir de abril e estou sonhando com o setting cognitivo/epistemológico, que se constrói em uma sala de aula. Abração!